Autor: Diego Wasiljew Candido da Silva
A Lei 12.015/2009 revogou o art. 224 do Código Penal, o qual tratava da chamada presunção de violência para assim dar lugar ao atual art. 217-A, que melhor delimita o âmbito de aplicação do tipo incriminador do estupro. A presunção de violência se caracterizava nas situações em que a vítima era: menor de 14 (catorze) anos; alienada ou débil mental (sendo tal circunstância conhecida pelo agente); e não poderia oferecer resistência por qualquer outra causa. O legislador possuía o entendimento que, devido à incapacidade de tais vítimas, a presunção seria a de que elas foram obrigadas ao ato libidinoso ou à conjunção carnal, assim configurando uma conduta violenta por parte do agente.
Todavia, muita polêmica se levantou acerca de tal presunção, uma vez que não soava condizente com os princípios basilares do Direito Penal tornar qualquer tipo de presunção que fosse contra os interesses do réu, este considerado inocente até a sentença condenatória definitiva (NUCCI, Guilherme de Souza. “Código Penal Comentado”. 2013, p. 987-988). Além do mais, as críticas ficavam ainda mais robustas quando se chegava a situações em que inexistisse a violência por parte do agente e houvesse o consentimento da vítima para a prática do ato, uma vez que a presunção de violência, e consequentemente o crime de estupro, mesmo assim estavam configurados, levando à conclusão de que o estupro com violência real ou presumida integrava o mesmo tipo incriminador e com penas idênticas.
Com a Lei nº 12.015/2009, emerge o estado de vulnerabilidade e desaparece qualquer tipo de presunção, delineando a aplicação do crime estupro. Assim, surge a figura do art. 217-A, não havendo mais a necessidade da utilização da ficção legal contida no art. 224 do Código Penal para enquadrar o agente em uma das penas do art. 213 ou do art. 214 do mesmo Código.
Assim dispõe o mencionado art. 217-A do Código Penal, ora estudado:
“Estupro de vulnerável
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2o (VETADO)
§ 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4o Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.”
Classificação doutrinária, bem juridicamente protegido, sujeitos ativo e passivo.
O bem jurídico tutelado no crime do art. 217-A é a dignidade do menor de catorze anos, do enfermo e do deficiente mental, ou seja, pessoas que possuam discernimento reduzido.
O tipo penal do art. 217-A é classificado como crime comum (não demanda sujeito específico), instantâneo (não se prolonga no tempo), de dano (consumação com a lesão do bem jurídico tutelado), praticado de forma livre (é cometido através de qualquer ato libidinoso) e pela via comissiva (pautado sobre a ação de “constranger”), lembrando que também pode ser omissivo impróprio (quando aplicado o §2º do art. 13 do Código Penal). Por fim, é crime material (violação da liberdade sexual da vítima), unissubjetivo (pode ser cometido por somente uma pessoa) e plurissubsistente (vários atos, formando um processo executivo que pode ser fracionado).
Quanto ao sujeito ativo, por se tratar de crime comum, pode ser praticado por qualquer pessoa. Inclusive, cabe ressaltar que o autor não precisa ser homem, podendo ser mulher, do mesmo modo que há a possibilidade da prática do delito contra a pessoa do mesmo sexo. No tocante ao sujeito passivo, deve ser a pessoa vulnerável, seja pela menoridade de catorze anos, seja por enfermidade, deficiência mental ou por qualquer outra causa que não pode oferecer a resistência. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 4 : parte especial : dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 6ª ed. 2012. p. 99).
Consumação e Tentativa
A consumação e a tentativa se dão conforme estudo do tópico 1.3 do crime de estupro do art. 213 do CP. Em poucas palavras, como se trata de crime material, a consumação se dá após o constrangimento da vítima, aplicando violência ou grave ameaça. Assim, referente à conjunção carnal, é no momento da introdução completa ou incompleta do órgão genital masculino na vagina da vítima vulnerável, v.g; referente ao ato libidinoso, consuma-se na prática deste, como v.g a satisfação da lascívia perante a vítima menor de catorze anos.
Há a possibilidade da figura da tentativa, todavia, é difícil a sua constatação. Pode-se falar em estupro tentado quando o agente, iniciando a execução, é interrompido pela eficaz reação da vítima ou pela reação de um terceiro que impede o contato íntimo.
Elemento Subjetivo
Elemento subjetivo do tipo é o dolo consubstanciado na vontade de praticar um dos núcleos do tipo, quais sejam, ter a conjunção carnal ou praticar ato libidinoso com o sujeito passivo. É exigido o elemento subjetivo específico, consistente em buscar a satisfação da lascívia, logo, não existe a figura culposa.
Modalidades comissiva e omissiva
Situa-se na mesma conjetura do tópico 1.5 estudado sobre o art. 213 do CP. O delito do art. 217-A também é praticado, via de regra, na forma comissiva (por uma ação), todavia, há a possibilidade da sua prática ser realizada pela via omissiva. Um exemplo típico desta última modalidade é da mãe que deixa a filha menor de catorze anos ser estuprada pelo pai e nada faz para impedir a ocorrência do crime (art. 13, §2º do CP).
Modalidades qualificadas
A Lei 12.015/2009 transferiu do art. 223 (revogado) para os parágrafos do art. 213 e do art. 217-A as figuras denominadas crimes qualificados pelo resultado. Hoje, nos parágrafos 3º e 4º do supracitado dispositivo encontramos situações que alteram o preceito secundário do tipo penal.
Quando da conduta resulta lesão corporal de natureza grave, a pena será de reclusão de 10 (dez) a 20 (vinte) anos; já quando da conduta resulta morte, a pena será de reclusão de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. É perceptível que tais hipóteses configuram condições de exasperação da punibilidade em decorrência da efetiva maior gravidade do resultado.
No tocante ao resultado lesão corporal de natureza grave, é importante salientar que a expressão foi utilizada em sentido lato sensu, sendo que por óbvio abrange as lesões corporais gravíssimas, mas não as leves. A qualificadora é preterdolosa, pois pressupõe dolo no estupro e culpa na lesão grave, uma vez que sendo a lesão também querida pelo agente, haverá a incidência do estupro em concurso material com a lesão corporal.
Quanto ao resultado morte, há o entendimento de que a qualificadora também é preterdolosa, devendo haver dolo na primeira conduta e culpa em relação à segunda conduta. Havendo dolo, seja direto ou eventual, em relação à morte, o agente responderá por estupro simples em concurso material com o homicídio qualificado. (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 4 : parte especial : dos crimes contra a dignidade sexual até dos crimes contra a fé pública. 6ª ed. 2012. p. 107-108).
Causas de Aumento de Pena
Em relação às causas de aumento de pena, há a aplicação dos artigos 226 e 234-A do CP, este previsto no Capítulo VII (“Disposições Gerais”) acrescentado pela Lei 12.015/2009 e aquele com previsão no Capítulo IV (também “Disposições Gerais”).
O art. 226 dispõe em seu inciso I o aumento de quarta parte da pena quando o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas, já o segundo prevê o aumento de metade da pena nas situações em que o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tem autoridade sobre ela.
O art. 234-A dispõe em seu inciso III o aumento de metade da pena se do crime resultar gravidez, já o inciso IV prevê o aumento de um sexo até a metade da pena se o agente transmitir à vítima doença sexualmente transmissível de que sabe ou deveria saber ser portador.
Por fim, quanto à causa de aumento prevista no art. 9º da Lei 8.072/90, em que há o acréscimo de metade da pena, o entendimento é o de que ela não deve ser aplicada, uma vez que o art. 224 do CP, que presumia a violência em alguns delitos, bem como os artigos 214 (atentado violento ao pudor) e 223 (formas qualificadas) foram revogados pela Lei 12.015/2009. Com a mencionada Lei, surge o crime autônomo de “estupro de vulnerável”, logo, não há que se falar em violência presumida e na aplicação da causa de aumento de pena prevista na Lei de Crimes Hediondos por falta de previsão legal.
Particularidades.
O artigo 1º, inciso VI da Lei 8.072/90 prevê que o estupro de vulnerável, seja na sua forma simples ou qualificada, é tido como crime hediondo, portanto, o autor do crime não poderá ser beneficiado com anistia, graça, indulto ou fiança, bem como a pena será cumprida inicialmente em regime fechado e a sua prisão temporária será de 30 dias.
Além do mais, o art. 225, § único do CP tipifica que a ação penal será pública e incondicionada quando o crime de estupro possuir como sujeito passivo pessoa vulnerável ou menor de 18 anos. Todavia, a jurisprudência caminha para o sentido de que nem todo o estupro de vulnerável procederá mediante ação penal pública incondicionada, sendo exceção a situação em que “se tratando de pessoa incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos, a ação penal permanece condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii.” (STJ. HC 276.510-RJ. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior. Julgamento proferido em 14/11/2014). Segue trecho do mencionado julgado:
“6. A própria doutrina reconhece a existência de certa confusão na previsão contida no art. 225, caput e parágrafo único, do Código Penal, o qual, ao mesmo tempo em que prevê ser a ação penal pública condicionada à representação a regra tanto para os crimes contra a liberdade sexual quanto para os crimes sexuais contra vulnerável, parece dispor que a ação penal do crime de estupro de vulnerável é sempre incondicionada.
7. A interpretação que deve ser dada ao referido dispositivo legal é a de que, em relação à vítima possuidora de incapacidade permanente de oferecer resistência à prática dos atos libidinosos, a ação penal seria sempre incondicionada. Mas, em se tratando de pessoa incapaz de oferecer resistência apenas na ocasião da ocorrência dos atos libidinosos, a ação penal permanece condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii.
8. Com este entendimento, afasta-se a interpretação no sentido de que qualquer crime de estupro de vulnerável seria de ação penal pública incondicionada, preservando-se o sentido da redação do caput do art. 225 do Código Penal.”[GRIFO NOSSO].
Por fim, cabe mencionar que, nos termos do art. 234-B do CP, os crimes contra a dignidade sexual correrão em segredo de justiça.