Autora: Maria de Fátima Cabral Barroso de Oliveira
Security from violence is central to women being able to achieve and enjoy other rights. Only recently have nation-state governments and international institutions accepted any responsibility for protecting women from violence. This acknowledgement has occurred just as key elements of globalization have increased the vulnerability to violence of less powerful and powerless people.
(L. Pauline Rankin and Jill Vickers, 2001) (1)
- Introdução
O(s) feminismo(s), principalmente em sua segunda fase (a partir da década de 1960), e os movimentos de mulheres, ajudaram a desnudar os atos violentos praticados dentro da célula familiar e das relações sociais e de trabalho, desempenhando um papel importante na política de controle criminal. A ‘nova cultura do crime e da política criminal’ (2) significa a profunda transformação na filosofia penal e na justiça criminal, que emergiu nas últimas duas ou três décadas, no sentido da utilização da pena preventiva e as estratégias de controle dos riscos que enfatizam a identificação prematura e destacam o controle formal de indivíduos ou grupos ‘problema’ juntamente com uma crescente intolerância da violência, tanto da lei quanto dos cidadãos de maneira geral.(3)
Assim, o movimento de vítimas e as campanhas contra a violência, principalmente contra a violência doméstica, bem como uma maior intolerância ao assédio em todos os patamares sociais (pelo menos em países como os Estados Unidos e o Canadá), afetaram a cultura da política do controle criminal que, além de ‘descobrir’ uma grande variedade de ‘crimes escondidos’, (re) definiu o crime. Estupro, violência sexual, o espancamento de mulheres, o abuso sexual de crianças e mesmo a micro-violência do assédio nas ruas da vizinhança – todos foram destacados e revelados.
Desde a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos de Viena, em 1993, os direitos das mulheres têm se confirmado como direitos humanos e, a violência contra elas, constitui hoje, inegavelmente, não só uma violação aos direitos humanos mais básicos, mas também um grande obstáculo à conquista da igualdade dos gêneros e, portanto, da justiça social. No entanto, há que se reconhecer na sociedade contemporânea, a inabilidade de se lidar com essa violação básica dos direitos humanos fundamentais.
O parágrafo 113 da Declaração sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres da ONU, já definira o termo ‘violência contra as mulheres’, como qualquer ato violento baseado no gênero sexual que pudesse resultar em dano físico, sexual, psicológico, ou sofrimento para as mulheres, incluindo a ameaça de tais atos, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, que ocorresse tanto na vida pública ou privada. Para algumas instituições, como a organização feminista Media Watch (4), o termo ‘violência contra a mulher’ se traduz em espancamentos, estupros, na prostituição, na pornografia, mas também na linguagem grosseira, nas piadas sujas, na ridicularização, na banalização, na negação de direitos, na invisibilidade, no racismo, no sexismo (5) e no ageísmo (6) a que são submetidas; a definição ampla permite ainda incluir o tráfico de mulheres, a mutilação genital e a violência doméstica – objeto de análise do nosso trabalho -, na tentativa de descrição do que seja a violência praticada contra as mulheres, do ponto de vista do debate internacional.
- A Violência em Casa
A violência doméstica foi definida no Brasil, através da Lei nº. 11.340 de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que reconhece que a violência pode ser também moral e psicológica e não necessariamente física. A lei – que alterou o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal -, no Brasil, representa a defesa dos direitos humanos da mulher, o que sem dúvida, pode contribuir para a redução da violência doméstica e para uma maior conscientização sobre direitos e deveres de cidadãos que, apesar de serem ‘iguais’ perante a lei e a sociedade, vivem em clima de desigualdade dentro da própria família. E, por cidadão entendemos pessoas de qualquer gênero sexual. Assim, a lei Maria da Penha deve atender a todos aqueles – os adultos, bem entendido -, que estejam sofrendo a violência por um desequilíbrio de poder nas relações familiares.
No entanto, como a grande maioria das vítimas nos crimes relatados se refere às mulheres – no Canadá, por exemplo, em 1998, de um milhão de crimes violentos cometidos entre parceiros íntimos, mais de 876.00 das vítimas eram mulheres e, de 1.830 homicídios cometidos contra parceiros íntimos no mesmo ano, três entre quatro vítimas eram também mulheres; assim, 98% dos condenados por homicídio no país são do sexo masculino -, aí enfocaremos o trabalho. O estudo de 1997, O assassinato de mulheres: o homicídio de mulheres nas relações íntimas em Ontário 1991-94, (7) mostrou que não só 74% das mulheres vítimas de homicídios foram mortas por um parceiro íntimo (8), como também 1/3 delas levaram ao conhecimento das autoridades algum tipo de violência prévia, isto é, violência sofrida antes de serem mortas pelo agressor.
Porém, como pode ser constatada pelos inúmeros estudos sobre a matéria, a violência doméstica está relacionada primariamente com poder e controle, isto é, a intenção do predador (a) é a de controlar, a de exercer um poder absoluto sobre a vítima, e não, necessariamente, a de infligir-lhe ferimentos.
Durante a década de 1990, 70% das mulheres vítimas de homicídio, foram assassinadas pelos seus parceiros íntimos do sexo masculino e o principal motivo alegado para o homicídio, foi a raiva e/ou o estresse provocado pela separação, de acordo com estudos da Universidade de Toronto. Em outras palavras, é a tentativa de controle da mente, das emoções e do corpo das mulheres que está em jogo.
Neil Boyd (9) associa a palavra ‘controle’, a controle de armas e a controle da raiva dos homens. Para ele, o cerne da questão nos crimes de violência doméstica está justamente na raiva masculina, naqueles homens que passam a acreditar que o uso da violência (na resolução de conflitos) é, por assim dizer, justificado; para ele, o controle da posse de armas seria somente uma parte da solução – simples, direta, racional e apoiada pela população – do problema da violência. O autor, confirmando o fato de que a raiva, os ciúmes e a vingança são as principais razões da violência doméstica, nos diz que (10):
Nós temos endossado a violência masculina como entretenimento. Os filmes comerciais de sucesso aplaudem o uso de armas. O boxing – a intenção deliberada de bater no outro até a inconsciência – é uma atividade celebrada (…) um homem com raiva e uma arma pode ser uma mistura volúvel, um cocktail (que poderia ser evitado) de auto-piedade e de destruição mecânica (11).
Os institutos dos crimes ‘passionais’, como a ‘legítima defesa da honra’ ou a ‘violenta emoção’, justificam a agressividade masculina e Côté, Sheehy, Majury (12), analisam que a violenta emoção, a perda do autocontrole, além de ser um convite à compaixão pelo agressor que ‘teve que matar’, porque foi ‘provocado’, é um conceito muito problemático dentro da abrangência dos crimes de violência contra as mulheres. Assim, à vítima cabe o estranho e contraditório personagem da (o) ‘mocinha (o)-vilã (o)’: ela própria é a causa do crime; é ela quem faz o agressor perder o controle que, ‘provocado’, não poderia ‘agir’ de outra maneira. Sobre ‘teoria da provocação’, as autoras nos dizem que:
The exculpatory defence of provocation literally allows men to get away with murder, reducing their conviction from intentional, sometimes pre-meditated murder, into one for manslaughter. Thus, the most violent forms of patriarchal crimes are reduced to an infraction akin to an accident, or a negligent act. This legal characterization trivializes femicide, and signals our criminal law system’s tolerance of wife-assault (p. 11).
No entanto, pesquisas na área das ciências sociais apontam para o fato de que esse tipo de violência é instrumental, sendo usada, na verdade, para restabelecer o controle sobre a mulher. Portanto, a ‘perda de controle’ é um instrumento deliberado e um processo consciente que pretende assegurar o controle deles sobre as mulheres que eles apropriaram (p. 24).
A visão de que homem com raiva (porque a sua esposa decidiu-se separar, o criticou, ou porque ameaçou delatá-lo para a polícia etc.) “perde o controle” quando ele decide matar, não é somente uma falsa representação dos fatos, mas também alimenta as explicações tradicionais que foram utilizadas para justificar a violência masculina. Já está na hora do discurso legal parar de endossar mitos e estereótipos que têm tal impacto prejudicial aos direitos humanos das mulheres que são protegidos constitucionalmente (op. cit. : p. 25).
De acordo com Fox (13), três grandes linhas de pensamento influenciaram a visão da sociedade ocidental no tocante ao tratamento dispensado às mulheres: as idéias religiosas judaico-cristãs, a filosofia grega e o ‘common law’, uma vez que as três tradições assumiram e justificaram o sistema patriarcal – refletido como a superioridade e a dominância masculina -, como ‘natural’. Assim, a violência contra as mulheres ‘era’ visto como uma expressão natural da dominação masculina, como parte da cultura que perpetuava essas ideologias. Parafraseando a autora, o conformismo – ordenado pelos deuses, apoiado pelos sacerdotes e estipulados pela lei – foi aceito e internalizado como necessário, como ‘natural’ para a sobrevivência das mulheres. E, dentro desse contexto, são desenvolvidas as mais variadas formas de violência contra as mulheres, não sendo possível, portanto, a discussão das questões sobre a violência, aqui especificamente, a ‘violência contra as mulheres’ fora de seu contexto sócio-cultural.
A raiva masculina, então, no contexto do homicídio de mulheres por parceiros, é um produto das relações sociais de opressão e da concepção de que os homens têm o direito ‘natural’ de controlar as suas parceiras. A sociedade poderá alterar, por exemplo, as leis relativas à posse de armas, mas como fará para alterar valores culturalmente enraizados e imbricados com a violência, que nada mais é do que o próprio reflexo de uma cultura que, no mínimo, tolera e justifica certos valores culturais masculinos?
No Brasil, a pesquisa da Organização Mundial de Saúde de 2005, mostrou que 22% das mulheres que foram agredidas pelos maridos, companheiros ou namorados – ex ou atual -, não relataram o episódio para ninguém. Aqui, fatores como a humilhação ou a vergonha, desempenham um papel importante; achar que ‘isso só acontece comigo’ faz com que a vitima, se sentindo isolada e desprotegida, tenha a impressão de não poder confiar em ninguém.
Para exercer o controle, o predador utiliza algumas ‘estratégias’: ele intimida – quebrando coisas, destruindo objetos que ela possua, mostrando armas -, ele abusa emocionalmente humilhando, xingando, incutindo sentimento de culpa, fazendo com que a mulher pense que é ‘louca’, destruindo, enfim, a sua auto-estima; ele isola, controlando todos os passos da mulher, observando com quem ela fala ou se encontra, monitorando os seus amigos, (supervisiona até mesmo o que ela lê) e se utiliza dos ciúmes como justificativa para as ações violentas; minimizando ou negando o abuso, ele ainda culpa a mulher pela própria violência sofrida – ela é a causa do comportamento e do resultado violento. O predador, normalmente, também usa as crianças como instrumentos contra a mulher, além de usar certos privilégios masculinos, como tratar a mulher como serviçal, tomar todas as decisões importantes, definir os papéis masculinos e femininos na cena social. Finalmente, o abuso econômico, isto é, não deixá-la trabalhar – fora de casa -, mantê-la com mesada, ‘cuidando’ do dinheiro dela, não permitindo o acesso da mulher à parte financeira do relacionamento e o uso da coerção e das ameaças – ameaça de abandono, de cometimento de suicídio, de agressão etc., completam o quadro das estratégias (14) utilizadas para que o predador mantenha o poder e o controle da relação, estando assegurado, desta maneira, uma relação desigual, hierárquica e violenta. Uma relação que não está baseada em respeito, confiança, na divisão das responsabilidades do dia-a-dia, na negociação, enfim. Trata-se, em suma, de uma relação injusta, sob todos os aspectos, inclusive o ético.
As mulheres são espancadas uma média de 35 vezes antes que procurem a ajuda das autoridades e, de acordo com a Anistia Internacional, morrem 600 mulheres por ano vítimas da violência doméstica na União Européia. Um estudo realizado pelo StatsCan – departamento de estatísticas do governo canadense – em 2006, constatou que a maioria das vítimas da violência doméstica, reportam o fato às autoridades somente uma única vez, apesar de sofrerem violências em outras múltiplas ocasiões.
Apesar do controle de armas ser parte de uma solução, como já dito, a pesquisa canadense mostra que na grande maioria dos casos (83%), o ato violento não é praticado com o uso de armas de qualquer espécie, mas ainda assim, 52% das vítimas são machucadas – 90% com ferimentos leves, 4% com ferimentos graves – e 1% são mortas como conseqüência da violência.
- A mulher e a ‘autonomia’ da vontade
Por que a mulher continua com o parceiro, mesmo quando está em risco a sua integridade física, moral e psicológica? Por que ela simplesmente não o deixa? Por que a mulher tolera um relacionamento abusivo? Alguns fatores – que até podem ser considerados menos objetivos, ou mesmo fantasiosos -, contribuem para que a mulher permaneça na situação de ‘vítima’; a esposa, namorada ou parceira quer que o ‘casamento’ seja bem sucedido e, quando os têm, pensam nos filhos em primeiro lugar; elas amam o companheiro que, afinal, não é violento sempre. Em um relacionamento onde o abuso é uma rotina, as mulheres ficam emocionalmente ‘confusas’ e não confiam em si mesmas; elas acreditam que provocam a raiva e a violência do agressor e fazem de tudo para ‘aplacar’ a situação; afinal, a ‘culpa é dela. Fatores financeiros também têm que ser levados em consideração; elas provavelmente dependem economicamente do parceiro e, não ter outra fonte de renda e nem se sentir capaz de ganhar o próprio sustento – elas ‘aprendem’ essa incapacidade -, contribuem para que a vítima permaneça isolada, dentro do contexto da violência. Os fatores religiosos também devem ser mencionados; as mulheres são ‘treinadas’ para não trair e nem abandonar os seus maridos, seja quais forem as circunstâncias. O desconhecimento das leis também pode constar dessa lista; nem todas as mulheres sabem quais são os seus direitos perante a legislação brasileira. Mas, para encerrar, devemos considerar que, em muitos casos, as mulheres simplesmente têm medo de abandonar os maridos ou os parceiros violentos; elas sabem que eles a espancam, mas se deixá-los eles a matarão.
A violência, de acordo com especialistas, trabalha em ciclos; primeiramente, a mulher experimentará a fase denominada de ‘estresse’, ou seja, esse é o momento em que não há a comunicação, mas os acessos de ciúmes, a baixa auto-estima e a tensão entre os parceiros. Depois, na segunda fase, o ‘incidente violento’ entrará em cena: as ameaças, a humilhação, a hostilidade, a agressão física ou sexual, enfim, a violência per se. Na terceira fase do mapa, da ‘lua-de-mel’, não há mais a presença do abuso. Agora resta o sentimento de culpa, o pedido de perdão, as promessas de que atos violentos não mais se repetirão e a ‘sinceridade’ do arrependimento do agressor. No entanto, como as fases são cíclicas, tudo se repetirá, caindo por terra a esperança de que o ‘incidente’ violento nunca mais aconteça, de que o predador mude de comportamento, de que a relação se transforme – magicamente, naquela idealizada.
Assim, o peso dos fatores psico-sociais, econômicos e culturais não são tão leves e arbitrários como desejam alguns. Em um mundo ideal, as mulheres teriam alta estima e seriam assertivas. A vítima levaria o caso às autoridades e a violência cessaria; a criança ou o/a adolescente falaria para os pais que o parceiro(a) lhe infligira maus tratos e isso a protegeria (afinal, existe o ECA – Estatuto da Criança e dos Adolescentes); ela falaria para a comunidade, que interviria a seu favor. Nesse mundo, os homens não se sentiriam à vontade para acreditar que o amor e a sexualidade das mulheres a eles pertencessem; ou, para sentirem ‘raiva’ quando os seus desejos de propriedade não fossem satisfeitos. As autoridades não interpretariam atos violentos contra a mulher como simplesmente uma ‘briguinha’ de casal e nem ‘apoiariam’ tal violência, quer através de palavras: ‘moço bom, trabalhador que perdeu a cabeça’; ‘amanhã tudo estará bem’, ‘homem é assim mesmo’ e ‘mulher tem que ter paciência’ ou ainda ‘ele está assim porque ela o abandonou; ele a ama muito’, ou através das decisões judiciais que ainda favorecem aos predadores. (15)
Nesse mundo ideal, não haveria juiz de 1ª instância que simplesmente desconsidera ou tenta classificar a Lei “Maria da Penha” como inconstitucional; e nem tão pouco ela (a lei) seria definida como “um conjunto de regras diabólicas”; “um mostrengo tinhoso”; ou, “Ora, a desgraça humana começou no Éden por causa da mulher, todos nós sabemos, mas também em virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem…” (sic!); (16) todos saberiam os fatos relacionados à violência contra parceiros:
Espancamentos, por exemplo, tendem a se tornarem mais freqüentes e violentos com o passar do tempo;
Estatisticamente, uma em cada oito mulheres que vivem com um homem, já foi agredida por ele;
A violência acontece em todos os níveis da sociedade, não importando a que classe social, raça, nível de escolaridade, etnia, ou grupo religioso que a mulher (ou o homem) pertença;
O álcool, as drogas e a imaturidade – apesar de contribuírem – não são as causas da violência;
Os homens que agridem as suas esposas, namoradas ou parceiras, não são doentes mentais;
A violência não é o resultado da perda do controle ou de uma discussão que tenha tomado rumos indevidos;
A ameaça da violência ou a primeira agressão já são sinais de um relacionamento problemático e desigual;
As mulheres que sofrem o abuso, além das conseqüências físicas, podem sentir medo, vergonha, ansiedade e depressão. Uma auto-estima baixa, pensamentos suicidas e o abuso do álcool e das drogas e o sentimento de estarem completamente sós, isoladas, completam o quadro;
A violência doméstica é crime.
Não precisaria ser dito que a violência contra o parceiro causa um profundo impacto nas crianças; como fica a responsabilidade dos adultos formarem os cidadãos produtivos, com valores morais e éticos; aqueles que irão conviver e, esperançosamente, contribuir para a sua comunidade?
- Os homens e a construção de um modelo ‘mais positivo’ dos gêneros
Em 2003, o Brasil foi o anfitrião do encontro organizado pela ONU – Organização das Nações Unidas – intitulado “O papel dos homens – jovens e adultos – em alcançar a igualdade dos gêneros’ (17) e, em um dos muitos tópicos abordados, foi levantada a questão sobre a conquista da igualdade dos gêneros ainda ser considerada como um problema das mulheres, um assunto a elas restrito e limitado e de que o papel dos homens nessa conquista ser assunto relativamente ‘novo’ nas Nações Unidas. No entanto, ‘está sendo reconhecido que um melhor entendimento dos papéis e das relações sexuais e desigualdades estruturais relacionadas, podem aumentar as oportunidades para ações e medidas políticas efetivas para superar as desigualdades. O papel dos homens jovens e adultos em desafiar e mudar as relações desiguais de poder é crítica’.(18) O texto ainda informa que eles, os homens, podem contribuir para que, não só os direitos humanos sejam alcançados, mas também para que a democracia seja promovida, a pobreza seja erradicada e, para que a justiça econômica seja uma realidade.
Maria Emília Therezinha Xavier Fernandes – a primeira senadora eleita, em 1994, pelo Rio Grande do Sul -, e então ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, declarou que a reunião servia para mostrar que o Brasil tinha um especial interesse ‘em colaborar com os outros países nas questões sobre a igualdade dos gêneros e da igualdade raciais e étnicas, acrescentando que os homens, ‘encorajado pelas questões levantadas pelas feministas e pelo movimento de mulheres, tinham começado a repensar os seus papéis e as suas responsabilidades na construção da igualdade dos gêneros’. Ali estavam colocadas, de acordo com a ministra, a divisão da responsabilidade familiar, a educação e a criação das crianças; a reflexão sobre a discriminação existente no mercado de trabalho, a luta contra a violência praticada contra as mulheres e o engajamento ao combate do HIV/AIDS.
A desigualdade dos gêneros parece estar vinculada a vários problemas sociais e, uma sociedade baseada na igualdade, não toleraria a violência contra os gêneros; a violência doméstica, portanto, não poderia existir. E, se os homens são importantes instrumentos na redução da violência, seria importante que algumas características do agressor sejam reconhecidas. Estudos demonstram que eles, geralmente:
Negam-se a assumir a responsabilidade pelo comportamento violento;
Culpam terceiros ou outras situações pelo comportamento violento, como o álcool, por exemplo;
Muitos são inseguros, imaturos e insensíveis; Bebem muito;
Abusam fisicamente, mas também praticam o abuso emocional, verbal e sexual; Identificam-se com a figura do ‘macho’ e acreditam na superioridade masculina; Admitem que, de maneira geral, odeiam as mulheres;
Acreditam no uso da violência para ‘ensinar’; São ciumentos e possessivos;
Tendem a se envolver nas atividades das mulheres; Não acreditam que devam ser punidos por suas ações.
De acordo com o jornal canadense The Toronto Star, em San Diego, Califórnia, (19) os homens condenados por violência doméstica são obrigados a um tratamento psicológico
– que tem a duração de um ano -, que os ensina a controlar a raiva. Além do pagamento obrigatório de US$ 10,00 semanais pelas sessões (na época), os que não compareciam à terapia, corriam o risco de cumprirem a pena em regime fechado. De acordo com o texto jornalístico, os condenados que completaram o curso foram os que menos reincidiam – somente 5% dos agressores ‘tratados’ voltaram a cometer atos de violência, enquanto que, 70% daqueles que não se submeteram à terapia do controle da raiva, reincidiram. San Diego, no final da década de 1980, teve uma abordagem de ‘tolerância zero’ para o crime de violência doméstica e conseguiu, ainda que pesem críticas e o alto índice de condenação, diminuir a reincidência e o homicídio doméstico.
Ainda de acordo com o texto jornalístico, o estado da Califórnia – que acredita que a violência doméstica seja aprendida e que para acabar com ela seja necessária a mudança de comportamento do agressor -, além de estipular a terapia de controle da raiva como mandatória, também coloca em prática algumas ações que a diferenciam de outros lugares da América do Norte. Alguns dos exemplos seriam o treinamento especial pelo qual passa a equipe destinada a atender as vítimas da violência doméstica; a própria polícia fotografa as lesões físicas sofridas pelas vítimas e também preenche, no local do evento, um relatório detalhado sobre o fato criminoso. Quando do julgamento, a equipe de promotores também é especialmente treinada em violência doméstica que, aliás, entrevista a vítima antes do julgamento. As fotografias tiradas na cena do crime assim como a própria chamada telefônica para o serviço de emergência do departamento de polícia, servem como provas processuais. Na verdade, todas essas medidas têm a finalidade de condenar os agressores sem, necessariamente, a ‘participação’ das vítimas (elas não precisam testemunhar), que têm um envolvimento emocional conflituoso e especial com os predadores.
- Conclusão
Assim, parece que os caminhos a serem seguidos pela sociedade são múltiplos; talvez a ênfase no (re) aprendizado, na intervenção – inclusive preventiva – como uma melhor solução do que a prisão, visando a mudanças de comportamentos, seja de fato importante; prevenir, através da intervenção, que crimes ‘maiores’ sejam cometidos parece ser exeqüível.
Mas, fundamental seria a comunidade se conscientizar de que vários fatores, que passam despercebidos em nosso dia-a-dia, contribuem para que uma sociedade violenta contra as mulheres seja construída e, para que essa violência seja reproduzida na célula familiar. A mídia, por exemplo, se encarrega de contar inúmeras histórias usando todos aqueles estereótipos ‘femininos’ de submissão, traição, emoção; além disso, as mulheres são representadas como os eternos objetos sexuais que, vivendo em função dos homens – e para eles -, têm os seus corpos explorados e fragmentados de uma maneira obsessiva. A mulher nua é exibida em vários lugares públicos; elas são partes, pedaços de corpos, objetos do desejo masculino.
Em vários videoclipes, por exemplo, é possível observar como as mulheres aparecem muitas vezes seminuas, em contraposição aos homens, que estão sempre vestidos; as bancas de revista exibem à vontade materiais pornográficos e, pelas ruas da cidade, não é raro, principalmente na região central de São Paulo, presenciar o incitamento às salas de ‘prazeres sexuais’ dos inúmeros cinemas ‘eróticos’ da região.
As características biológicas das mulheres são constantemente equacionadas com objetos, inclusive para que a venda de produtos – de qualquer espécie – seja realizada, o que estimula a pensar que as mulheres podem ser ‘adquiridas’, possuídas e, portanto, descartadas. São afinal das contas, ‘coisas’.
As ‘brincadeiras’ e as ‘piadas’, que têm como personagens centrais as mulheres, são incontáveis e muitas reafirmam a ‘ignorância’ e/ou a ‘burrice’ delas; elas são sempre ‘as cabeças-de-vento’ fúteis que não sabem como gastar apropriadamente, as tolas que não sabem administrar ou as incompetentes não-confiáveis, as ‘meninas’, as não-adultas, as infantis que, vistas como irresponsáveis, não têm o direito de participar da vida pública, que é ‘séria’ e, portanto, masculina.
Se elas são assertivas e inteligentes, ou se não ‘choram’ a cada problema enfrentado, principalmente na vida profissional e fora da esfera privada, enfim, quando desafiam os tradicionais estereótipos ‘femininos’, se transformam com muita facilidade nas ‘bruxas’ ou nas prostitutas, naquelas que conseguem atrair a ira do público – de maneira ‘inexplicável’ e que, portanto, ‘merecem uma lição’ e/ou ‘merecem morrer’.
Nas formas mais comuns do entretenimento, como nas novelas nacionais, o feminino também é ‘marcado’ e a violência lingüística mais uma vez se revela. Nelas, além da violência física contra elas – esbofetear, dar empurrões, chacoalhar, algumas cenas de forte apelo sexual que mais parecem estupros -, e do stalking,(20) a enxurrada de termos como ‘vaca’, ‘vagabunda’, ‘velha’, ‘biscate’, ‘gorda’ se tornaram não só freqüentes, mas ‘normais’, isto é, há uma naturalização, uma banalização quanto ao tratamento dispensado às mulheres. Assim, parece ‘natural’ chamar as mulheres por termos que, se formos condescendentes, são desnecessários, porém, numa análise mais cuidadosa, podemos afirmar que, na verdade, trata-se também de violência, de violência lingüística que, como tal, gera efeitos, traz conseqüências; ela não só ajuda a construir a desigualdade dos gêneros sexuais, como também reflete essa desigualdade na sociedade.
As notícias ‘sérias’ também não escapam ao sexismo e nem à reprodução dos estereótipos ‘femininos’; quando da morte de Dna. Ruth Cardoso, por exemplo, muitos comentaristas elogiavam o fato de ela ter sido ‘discreta’, palavra que, aliás, se repetiu incessantemente na tentativa de definir a mulher e a profissional Ruth; certo jornalista de conceituada rádio, contrapôs ‘discreta’ ‘com aquela outra esposa de presidente, aquela perua que, todos sabiam, mandava nele’. Na sociedade patriarcal, como os valores masculinos estão distanciados dos valores femininos, certas características são valorizadas nos homens, como o sucesso profissional, a perseverança, a agressividade e o reconhecimento público; às mulheres, a passividade, a docilidade, o ‘maternalismo’, enfim, a chamada ‘feminilidade’ (21) é consagrada. Se a mulher aí não se enquadrar, ela será ‘julgada’ pela sociedade, severamente.
Se quisermos reduzir a violência de maneira geral, teremos que ser mais generosos em nosso debate local; ele tem que se ampliar. Não se pode falar de violência doméstica, sem falar da ‘violência contra as mulheres’ e, não se pode falar da violência contra elas, sem discutir temas mais abrangentes. Apesar do enfoque da violência ser aquela relacionada aos crimes sexuais e de violência física, principalmente pela mídia (talvez seja o que mais venda), a violência não se restringe a elas. No entanto, lidar com o problema da violência doméstica de maneira satisfatória, parece ser um passo importante dentro de uma conjuntura de violência mais abrangente. Ball e Wyman (22) realizaram a Carta de Direitos para as Mulheres Agredidas, um ‘mantra’ de ‘empowerment’ para aquelas mulheres que sofrem com a agressão dos seus parceiros e que estão ‘presas’ ao seu perverso cotidiano.
Eu tenho o direito de não ser agredida;
Eu tenho o direito de sentir raiva das agressões passadas; Eu tenho o direito de mudar essa situação;
Eu tenho o direito de estar livre do medo e do abuso;
Eu tenho o direito de requisitar e de contar com a assistência da polícia e das agências governamentais;
Eu tenho o direito de compartilhar os meus sentimentos e de não ser isolada das outras pessoas;
Eu tenho o direito de querer um modelo de comunicação melhor para os meus filhos;
Eu tenho o direito de ser tratada como um adulto;
Eu tenho o direito de abandonar um ambiente violento; Eu tenho o direito à privacidade;
Eu tenho o direito de expressar os meus pensamentos e os meus sentimentos;
Eu tenho o direito de desenvolver os meus talentos e as minhas habilidades individuais;
Eu tenho o direito de tomar as necessárias medidas judiciais contra o parceiro violento;
Eu tenho o direito de não ser perfeita.
O combate à violência é uma questão ética e moral. E, enquanto as oposições cartesianas classificam os atores sociais em categorias únicas, das quais somente algumas delas exercerão o poder, as dinâmicas dos processos globais devem levar em conta as visões múltiplas de todos os atores sociais, para que seja possível a análise e a proposição das mudanças que abarcam todos os setores sociais (…). (23) Deveríamos ter o direito de descobrir o ‘homem’ que existe dentro de nós, bem como os homens, também, deveriam ter o direito da descoberta: as ‘mulheres’ que trazem consigo podem ser uma surpresa interessante para eles que, afinal, também sofrem, e muito, com a sociedade patriarcal, desigual e violenta.
Referências bibliográficas:
(1) RANKIN, L. P. e VICKERS, Jill (2001). Women’s Movements and State feminism: Integrating Diversity into Public Policy. Disponível em: WWW site of Status of Women Canada.
(2) GARLAND, D. (2001). The Culture of Control: Crime and Social Order in Contemporary Society. Chicago: University of Chicago Press. Citado no artigo “Gender Gap: Trends for Violent Crimes, 1989 to 2003: AUCR-NCVS Comparison. Disponível em http://fcx.sagepub.com/cgi/content/abstract/1/1/72
(3) Tradução livre do artigo acima mencionado. P. 90.
(4) Organização feminista sem fins lucrativos que estuda a representação das mulheres na mídia.
(5) O sexismo pode ser definido como qualquer atitude, ação ou estrutura institucional que, propositadamente e sistematicamente, subordina uma pessoa com base no gênero ( homem ou mulher).
(6) De acordo com o The New Lexicon Webster’s Encyclopedic Dictionary of the English Language – Canadian Ed. o substantivo ageism significa a “discriminação contra os mais velhos” e, de acordo com o Oxford Advanced Learner’s Dictionary of Current English – 6ª ed. – 2000, significa o “tratamento injusto dispensado às pessoas mais velhas por serem consideradas velhas”.
(7) Estudo intitulado Woman Killing:Intimate Femicide in Ontario 1991-94.
(8) 80% de todos os homicídios acontecem entre familiares ou amigos próximos
(9) Diretor da Escola de Criminologia da Simon Fraser University de Burnaby, BC, Canadá.
(10) Artigo publicado no jornal The Toronto Star de 12 de abril de 1996, p. A25, na seção Insight.
(11) Tradução livre.
(12) CÔTÉ, Andreé; SHEEHY, Elizabeth; MAJURY, Diana (2000). Stop Excusing Violence Against Women – NAWL’s Brief on Defence of Provocation. Disponível em: www.nawl.ca/provocation.htm
(13) Fox, Vivian C.Journal of International Women’s Studies – Vol. 4 #11, November, 2002.
(14) Baseado no quadro “Power and Control – Physical -Violence – Sexual” do Domestic Abuse Intervention Project de Minnesota, EUA.
(15) Ver, por exemplo, a recente decisão do TJ que não considerou um estupro como crime hediondo. Artigo publicado na Folha de São Paulo On Line de Roberto Madureira da Folha Ribeirão em 11/11/2008. Disponível em http://intranet.tj.sp.gov.br/imprensa/Clipping_view.aspx?articleid=8983
(16)
Cf. artigo Para juiz, lei de proteção às mulheres é “diabólica”, publicado no jornal Destak, na seção Brasil/Mundo, p. 04, de 22 de outubro de 2007, sobre um juiz de Minas Gerais que julgou inconstitucional a referida lei.
(17) The Role of Men and Boys in Achieving Gender Equality, report of the Expert Group Meeting, Brasilia, Brazil – 21 a 24 de outubro de 2003. Disponível em www.un.org/womenwatch/daw
(18) Tradução livre do texto (op. cit.: 3).
(19) Matéria publicada no encarte especial Hitting Home: Spousal Abuse no jornal canadense The Toronto Star em março de 1996, p. 17.
(20) O ‘stalking’ é uma figura penal que considera crime o ato de seguir e vigiar alguém durante certo período de tempo de maneira ‘perturbadora’ ou ameaçadora, de acordo com o Oxford Advanced Learner’s Dictionary of Current English. 6ª ed. London: Oxford University Press (2000).
(21) CABRAL BARROSO DE OLIVEIRA, M. de Fátima (2006). A Mídia e as Mulheres: Feminismos, Representação e Discurso. Dissertação de Mestrado, p. 68. Disponível em: www.teses.usp.br
(22) BALL, C. e WYMAN, Elizabeth (1985). Battered Wives and Powerlessness; What can the counselors do?
(23) NASH, June (2005). Women in Between: Globalization and the New Enlightenment. Department of Anthropology, City University of New York. Disponível em Signs: Journal of Women in Culture and Society. The University of Chicago, vol. 31, n. 1.
Autora: Maria de Fátima Cabral Barroso de Oliveira – Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), mestra e doutora em Letras Modernas no programa Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da mesma universidade – USP é advogada e professora da Escola Superior de Advocacia – ESA, subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB.
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